terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Sobre o diabo ser o pai da mentira

   Se tem uma coisa que me deixa muito ofendida, é suporem que estou sendo desonesta ou manipuladora. Evidentemente que pessoas desonestas e manipuladoras diriam o mesmo e tudo que tenho é minha palavra que, desacreditada, não significa nada. No entanto, fico ofendida justamente porque eu levo uma vida em que escancaro absolutamente tudo sobre mim e tenho certeza que nunca me pegaram numa mentira (no máximo contradições, coisa que acho natural se você é alguém que aceita mudar de ideia, muda com o tempo ou tem noção de contexto).
   Pra entender como funciono, no entanto, acho importante entender que fui criada por uma mulher evangélica, que levava à risca as ideias dessa doutrina. E uma das coisas que crianças evangélicas aprendem é que o diabo é o pai da mentira e a ter medo, muito medo do inferno. Apesar de não ser mais evangélica, muito pelo contrário, tem coisas dessa minha educação que nunca irão me deixar, e uma delas é um desprezo profundo pela mentira. Outra delas, sobre as quais também quero falar, é um compromisso muito grande e visceral com ser uma pessoa boa (e não por ser boa, mas boa de ter empatia e me preocupar com outros) e ter como objetivo maior da vida um mundo melhor.
   Falo disso porque acho que é uma vivência que pouca gente fora dela entende ou parou pra pensar sobre. É uma perspectiva de mundo muito diferente, um jeito de ser muito diferente, que dificilmente entenderão as pessoas “do mundo”. Esse mundo para o qual saí, mas no qual, devido a essa educação diferente, sempre me sentirei meio estrangeira.
   Diz minha psiquiatra que a base dos meus problemas é esse: a religião e a forma como isso deixou em mim a sensação de ser estrangeira. Não me encaixo lá, não me encaixo aqui. Sou, de fato, uma pessoa estrangeira. Apesar de me esforçar, nem sempre sou suficientemente mundana, mas dentro dos meios evangélicos tampouco eu sou evangélica. E por mais que eu tenha deixado minha infância, a igreja, essas coisas não deixaram de habitar a minha vida e de fazerem parte dos meus conflitos.
   A coisa é que, graças a tudo isso, boa parte da minha ética se baseia no imperativo categórico, que é, traduzindo: não fazer com os outros o que não quero pra mim mesma, acreditar que o mundo não funciona se houver quebra de confiança.
   Sendo assim, eu fico muito admirada sobre como é comum as pessoas que foram criadas fora dessa bolha, mentir ou trair. As pessoas – e isso realmente me choca, ou pra usar uma expressão evangélica e moralista: me escandaliza – traem e mentem o tempo todo. É a isso que as pessoas “do mundo” estão acostumadas e é com base nisso que levam a vida, inclusive mentindo e traindo, “afinal quem não mente ou trai?”.
   Eu não to falando que evangélicos nunca mentem ou traem. Ou que não existem contextos em que essas coisas acabam sendo inclusive a única saída (pois eu sei que o imperativo categórico tem falhas). O que eu percebo é que a mentira e a traição são coisas profundamente naturalizadas aqui “no mundo”, coisa que “lá dentro” jamais seria. E também abro parênteses que, né, depende de que igreja pentecostal ou evangélica estamos falando e tudo isso tem um recorte de gênero bem marcado (geralmente só as mulheres se veem obrigada a seguir de fato a bíblia, nas igrejas).
   Por isso me irrita tanto gente “do mundo” inferindo que to de má-fé. Porque essa desconfiança só existe justamente porque... hum, bom, a pessoa é mentirosa, por isso acha que eu também sou manipuladora, mentirosa, estou de má-fé. Afinal é algo que ela faria, ou outras pessoas fariam. Pois as pessoas fazem o tempo inteiro, tipo respirar. É assim que funciona um universo em que as pessoas, por definição, estão mentindo: não existe confiança. Mas no meu universo é inadmissível que assim seja. É inadmissível eu ser assim, é inadmissível que as pessoas sejam assim.
   Em geral, eu espero das pessoas o contrário: que elas estejam dizendo a verdade. Que elas errem por ignorância, ou que talvez tenha se expressado mal. Porque é isso que eu faço, é assim que eu sou.
   No entanto, eu desconfio de pessoas desconfiadas. Pra mim é uma questão de mão-dupla: as pessoas temem nos outros, aquilo que elas sabem que são capazes de fazer. E fazem.

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