terça-feira, 10 de novembro de 2015

O que te faz infeliz?

Uma coisa que percebo nessa geração de deprimidos é que eles se cobram muito, tanto produtividade quanto identificação, essas são as duas maiores ciladas.
A gente vive num lugar e época em que o grau de liberdade é potencialmente enorme, muitos podem ter a religião, formato, filosofia de vida e trabalho que quiser, no entanto não se permitem escolher ou ficam à deriva nesse mar de possibilidades, é aí que entra a cilada da identificação.
Talvez pela sensação de solidão, por querer pertencer a algum grupo e ter legitimidade e apoio em suas escolhas, as pessoas caem na identificação. É uma coisa muito adolescente, por sinal. Que tribo é a sua? Qual pertencer? E, onde entra a maior cilada: qual a mais certa e a mais feliz?
Não que não seja importante ter amizades, pessoas que compartilhem ideias, crenças com a gente, o problema é querer pessoas idênticas a nós e nisso tentar ser idêntico a alguns outros (essas são as mesmas pessoas, por sinal, que farão de tudo para adequar os outros, que considera mais imperfeitos que elas, ao seu próprio sistema). E, pior ainda, depositar nessa crença da identidade que assim será mais certa e mais feliz. O que tenho que fazer igual ao outro para ser feliz? Que modelo eu devo repetir? Aí começa uma jornada em busca de uma certeza e felicidade que nunca chega, porque a felicidade é justamente o oposto disso.
Felicidade não é ser igual ao fulano ou à fulana bonita, forte, talentosa e produtiva, não é o sistema de crença nem o formato de vida que você idealizou no outro como mais perfeita que a sua. Felicidade é encontrar a si mesma, os seus próprios gostos, a sua identidade (que é, de alguma maneira, única). Você tem que se aceitar. Você não vai ser Van Gogh, você vai ser você, assim como Van Gogh foi ele mesmo e não os outros pintores que fizeram um baita sucesso em vida, ainda bem, né?
Isso tudo requer humildade pra perceber que você não é uma deusa onipotente que sabe todas as verdades e caminhos certos da vida e também você não vai ser a Beyoncé. Quem sabe finalmente você irá notar que as pessoas, todas elas, não só seus ídolos, têm talentos, são importantes. Seja por jardinarem bem, por amarem bem, ou lutarem bem, ou fazer rir, ou cuidar bem, enfim, cada pessoa tem seu próprio talento, jeito e ritmo. E todas são dignas de amor.
A vida não é como fizeram crer na escola e no sistema capitalista: um só jeito de ser adulto, um só jeito de ser bem sucedido, um só jeito de ser inteligente, um só jeito de ter talento, uma só resposta certa e um só ritmo, se não você errou e não merece carinho. Não que não exista verdade ou certo, moralmente falando. Mas não existe modo de viver a vida mais verdadeiro ou certo que outros.
Se tem uma coisa que esses antidepressivos me ensinaram, rs, é que eu preciso parar de pensar em outros e pensar em mim. Que minha identidade e a minha vida cabe a mim construir e não tem comparação. Eu preciso parar de me perguntar qual a chave da felicidade da fulana e me perguntar qual a chave da minha felicidade. O que me faz feliz? A resposta não é instantânea, infelizmente, tenha paciência. E é importante ter em mente também que qualquer que seja a resposta agora ela pode mudar com o tempo. Quando criança eu gostava de calor, agora é o frio que me faz feliz. Saber isso é extremamente bom, porque assim eu fico menos assustada com a perspectiva de perder qualquer coisa que me faça feliz neste exato momento: as coisas que me fazem feliz mudam. Se eu perder alguma delas novas surgem.
Talvez seja mais fácil responder: o que me torna infeliz?
O que me torna infeliz, eu, Marcely, são as metas externas. A produtividade que o mundo capitalista me impôs. Eu preciso do meu próprio tempo, acordar no meu horário, fazer coisas lentamente ou simplesmente não fazer quando não quero. É muito complicado me livrar da culpa que carrego por ser assim, mas estou tentando me perdoar por eu ser eu e não a funcionária ideal de um sistema injusto e cruel. Engraçado que quanto menos me culpo e me cobro, mais eu produzo. O problema é que não dá para chegar nesse estágio simplesmente sabendo isso: que se eu largar mão eu irei fazer, porque ainda continuarei mentalizando que preciso fazer. Para isso eu preciso mudar o meu objetivo, o meu objetivo não é fazer coisas, mas ficar bem, feliz. A minha felicidade e bem precisa vir primeiro que a do mundo inteiro, não tem como eu fazer nada pelo mundo infeliz, não é egoísta querer ser feliz. Esse objetivo é fundamental: eu ser feliz, saudável, em paz em primeiro lugar. Primeiro ponha a máscara de oxigênio no próprio rosto, depois no rosto das crianças.

Mas essa é a minha resposta, qual a sua? O que te faz infeliz?

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Sentido

Talvez seja um problema meu ou da mente humana que não pode viver sem Deus.
Morto Deus sobra nós - certa megalomania ou narcisismo, pois Deuses têm poder sobre o mundo, têm controle. A gente é parte do mundo, a gente é nada.
A vida inteira a gente sofre na busca de sentido. Ou na tentativa de ignorar que não há nenhum sentido.
Aqueles que não têm coragem de enfrentar a morte em vida - ou a morte na morte -, (incluo eu), tentam se apegar a qualquer resposta ou auto-engano. Mudo eu, mudo os outros, mudo o mundo, amo... tudo o que puder me aderir ao mundo e fazer parte dele. Mesmo que tudo indique que o melhor seria desistir.
Qual o sentido de viver a dor? A alegria compensa a dor? A efemeridade, a curteza de tudo isso... e tanta dor, tanta dor.
A gente enche a cabeça de motivação, a gente se entope de mundo. Pra não encarar que a gente vai sofrer, nada fará assim muita diferença e a gente vai morrer e o mundo continuará girando. Não que eu queira que ele pare porque eu morri! Mas nada faz diferença. A dor está lá e você pode abafar os gritos. Mas vai tudo continuando... e você se convence que se a gente tiver um mundo ideal... sem injustiças... Mas, veja só, no mundo ideal as pessoas se matam de tédio.
A arte. Você pensa na arte. Mas a arte é tão dolorosa... Outro artifício, auto-engano de gente que recusa a morte. A morte ta ali mesmo assim.
Eu queria uma desculpa para não ser hedonista. Mas não tem. A única coisa é que o prazer é curto e inútil e esconde uma dor que grita no seu ouvido o tempo todo, você tenta se distrair e ela chamando sua atenção. O hedonismo é desistir e esperar morrer. E dói. Mas é o que sobra. É o que tem.
Sobra rir cínica. Ver todo mundo correr enquanto estou parada. E ter prazer nessa ridícula vaidade. Enquanto der. E gozar com minha dor. E morrer quando for pra morrer.
Talvez seja uma coisa meio egoísta e controladora não deixar as coisas serem como elas são.
O mundo, as estrelas, tudo girando a toa...
Algumas pessoas sofrem demais, outras de menos
Tem gato, tem beija-flor, tem lagartixa
Tem gente
Que diferença faz tudo isso?
Essa coisa gratuita que é a gente sofrendo
Dá vontade de rir até, é tudo tão bobo
Porco comendo rabo de porco porque é criado em cativeiro
A gente fica inventando essas coisas e filmando e dizendo pra se importar
Quem se importa?
O porco morre
A gente come
A gente caga
Nada acontece
Era feijoada

Sobre ser uma iceberg humana

A minha cabeça é um tumulto de pensamentos e às vezes eu só consigo dizer de relance uma coisa sobre a qual tem muito mais a ser dito.
Às vezes digo algo que as pessoas podem interpretar de mil maneiras porque é difícil colocar na escrita toda essa montanha de coisas que quero dizer e digo só uma parte. Às vezes minha escrita está para os meus pensamentos como um iceberg está para os olhos humanos: só é visível a ponta. E tem essa massa enorme de coisas por baixo que eu só consigo mostrar um vislumbre e eu sei que está lá, mas só é distinguível pra mim e outras pessoas que talvez estejam acostumadas com a natureza dos icebergs.
Ontem eu disse que para os íntimos eu sou uma bruxa descontrolada e sanguinária, para os distantes uma santa, uma fofa incapaz de ferir uma formiga. E sempre que penso nisso eu lembro dessa música (I'm a bitch, i'm a lover, i'm a child, i'm a mother, i'm a sinner, i'm a saint) e, mais do que isso, lembro de como isso está intimamente ligado com o fato de ser mulher numa sociedade machista.
Assim como a mulher da música (e acho que a Dworkin fala sobre isso), nós mulheres sempre somos interpretadas de maneira a caber em um estereótipo ou de santa, ou de pecadora, ou de bruxa, ou de princesa. Acontece que, como seres humanas, nós não cabemos nesses estereótipos, nós somos muito mais complexas que isso. E isso pode confundir a nós mesmas e aos demais.
Quem nunca ouviu que é louca? Que pra entender a gente precisa de um manual? A mulher dessa música e eu com certeza ouvimos.
E às vezes só nos resta aceitar que, por não nos rendermos a um estereótipo, nós somos os dois extremos e não somos "o meio termo".
Mas a verdade, às vezes fico pensando, é que isso não é loucura nossa, nem uma característica de ter muitos hormônios nem de sermos excêntricas (na verdade, não tem nada de excêntrico nisso, muito pelo contrário). Isso é ser humana. É não ficar calada na hora da raiva e nem por isso deixar de ser gentil e amorosa. É ser inteligente e também vaidosa e gostar de jogar conversa fora sobre bobagem. É ter muita raiva, mas também derreter de amor por causa de um gatinho. É se entristecer com as dores da vida, mas também sorrir por causa dos momentos de alegria.
Às vezes, como a mulher da música, eu vou "odiar de hoje", afinal "as pessoas são tão boas comigo" (principalmente o homem, que tem que ser "forte" pra "aguentar" ela) e eu continuo decepcionando as pessoas por não caber num estereótipo que elas fazem de mim.
Mas por uma rebeldia, uma intuição, por mais que em alguns momentos eu me veja controlada por esses estereótipos, em algum momento eu vou gritar e dizer: quer saber? Eu SOU ASSIM. Eu sou assim e não me envergonho disso.


domingo, 18 de janeiro de 2015

As mulheres e a auto-mutilação

   Vi outro dia essa notícia sobre uma indiana que estava em greve de fome por 14 anos, para protestar contra o sistema em que vivia e fiquei pensando nesse assunto. Lembrei da História do Feminismo da Nuria Varela, em que ela contava que muitos dos protestos pacíficos foram uma invenção feminina (ou feminista) e fiquei pensando nisso, na greve de fome e como ela é uma forma de auto-mutilação, assim como são os transtornos alimentares e os cortes auto-infligidos.
   Muito da auto-mutilação vem de uma agressivdade mal direcionada. Em vez de ela fluir para o alvo da nossa indignação ou raiva, ela se volta para nós. E sendo nós mulheres, socializadas para engolir nossa raiva, e para carregar nos ombros toda a culpa cristã, é natural que a auto-mutilação seja comum entre nós. E não sei se com isso quero dizer que está errado o pacifismo por inteiro ou fazer greve de fome. De fato, nossa raiva nem sempre pode ser bem direcionada. É difícil lidar com essa energia, entre nós. Ainda não encontramos o equilíbrio entre sentir e armanezar ódio e rancor e a auto-punição ou simplesmente sentir raiva. Lembro quão cedo comecei a me auto-mutilar: eu ainda era criança, discuti com a minha mãe, eu nem lembro por quê, mas me sentia tão culpada que esfreguei os nós dos dedos no tanque de pedra até ficarem em carne viva. E até hoje (inclusive agora), nos momentos de culpa ou raiva fico na cama fantasiando formas de auto-mutilação. Acho que é por isso que às vezes fico pedindo  menos rigor... acho que é um pedido para mim mesma de perdão: você não merece sofrer, apanhar, morrer por isso. Fico falando é pra mim mesma, num processo de auto-convencimento.
   Acho que precisamos refletir um pouco sobre tudo isso, sobre nossa forma de sentir e externar a raiva e como canalizamos nossa agressividade. E fica a pergunta sobre o pacifismo: seria energia mal-canalizada? Será que se canalizássemos essa agressividade de forma direta, não seria bom não só pra nós mesmas como também para alcançar os nossos objetivos?

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Sobre humor e rir das desgraças

  Eu curto aquele humor que chamam de negro (eu chamo de mórbido/sarcasmo) e eu concilio ele com minha militância perfeitamente e acho que aqui nós temos humoristas muito idiotas que acham que esse tipo de humor é o mesmo que ser ofensivo e politicamente incorreto e eu discordo profundamente disso.
  Meu humorista brasileiro favorito, por exemplo, é Machado de Assis (bom, o amor da minha vida é Machado de Assis). Ele representa o meu senso de humor: eu rio da ironia e do absurdo da vida, da morte, da infelicidade, do fato de sermos ruins, do meu niilismo eu gosto do sarcasmo e da ironia.
  Dizem que ele, o Machadinho, se inspirava nos autores ingleses ou norte-americano, não sei qual dos 2 (se alguém souber quem avisar nos comentários que queria ler, pois já li e reli Machado de cabo a rabo). E faz sentido pra mim, pois vejo nos seriados e filmes desses lugares muito desse tipo de humor que eu dificilmente vejo ser bem trabalhado aqui sem descambar pro ofensivo (e bem que mesmo lá direto e reto esse limite é ultrapassado, afinal a linha é tênia~).
  Não to falando isso só por complexo de vira-lata, mas pq cada lugar tem um tipo de humor mesmo, e no caso eu gosto desse. Talvez até por causa do contexto de globalização, enfim.
  Outra coisa que acho que as pessoas aqui não entendem é a diferença entre estereótipo enquanto caricatura e estereótipo enquanto preconceito, coisa que vejo muito usada nesse tipo de humor. Tipo o que faz Zambininha com o estereótipo de ativista, eu acho genial.
  Acho o estereótipo um artifício muito legal no humor, porque, como uma caricatura, permite a gente ver (em proporções absurdas e por isso é engraçado) nossos exageros, nossas falhas, o nosso absurdo.
  Tava assistindo, por exemplo "Don't Trust the B---- in Apartment 23", uma série que tem no netflix e ela faz uso muito desse tipo de humor e de estereótipos. Aliás, qual comédia não faz uso de estereótipos? Mas esse de estereótipos bem negativos. As personagens são bastante babacas e falam coisas absurdas. Tipo o cara que diz pra uma menina que disse sofrer bullying: "que bom pra vc, o bullying ta super na moda agora!". Na narrativa fica explicado que ele é um cara super egoísta e superficial, sem empatia, mas você ri do absurdo que é alguém ser assim e continua sua vida.
  Eu gosto disso, acho consolador pra quem é, pra usar uma expressão que gosto muito de memórias do subsolo: morbidamente consciente. Se você tem muita consciência das coisas, elas te machucam muito, e o humor é uma ótima fuga pra poder rir do que te fere. É como um analgésico: a ferida continua lá, mas por um momento ela para de doer. É um alívio. É mais que um alívio porque, de repente, em vez de doer ela te dá algum prazer.
  Mas tem muita gente que não entende a ironia ou sarcasmo por trás disso, que não consegue rir disso, ou acha que as personagens da ficção tem que ser todas legais, perfeitas e bacanas e por mim ok, também, você ri do que quiser. Mas dizer que é errado já discordo. E sei que muitos dizem: mas se fosse ofensivo pra você, você não riria. Na verdade, eu rio muito de mim mesma. Existe aquela expressão "ainda vamos rir muito disso um dia", é assim que funciona comigo, eu rio de coisas bastante tensas na minha vida, é como consigo lidar.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Sobre caridade e sonhar com o paraíso

  Outra coisa que noto sobre ter sido criada como evangélica num mundo não evangélico é a forma como muita gente não se importa em ajudar os outros/não têm isso como um hábito. Mas, ainda acho que isso tem muito mais um recorte de classe (gente que sempre foi rica em geral às vezes tem até um discurso igualitário ou de esquerda, mas na prática faz pouco ou quase nada pelas pessoas individualmente). Não que eu seja uma pessoa que acha a “caridade” a coisa mais linda do mundo – não, eu não acho. Caridade sem consciência de classe, sem luta anti-capitalista ou com elitismo é um troço bem inócuo, manutenção do status quo e acariciador de ego, na verdade. Mas eu acho que também ter discurso igualitário e ignorar morador de rua sempre, não doar uma roupa, não fazer um favor é bastante incoerente e coisa de quem nunca precisou de ajuda. E não significa que eu sempre ajude os outros e nunca seja uma pessoa egoísta. Mas que tento ajudar os outros sempre que possível, abro mão do meu conforto pra ajudar outra pessoa sempre que possível, nem sempre é possível, às vezes a gente que tem depressão é bem egocentrada e não quer “ver” nem“falar” com ninguém, tem medo de falar com estranhos, ou de sair, ou só consegue ter tempo para a própria dor e impotência. Mas ainda assim, eu tento. Tem gente que nem isso.
  Gente que tem apego por coisas tipo livros, brinquedos de infância, roupas, isso me deixa meio puta da cara, pois sou essa pessoa que quando pequena viveu uma vida melhor graças a me doarem essas coisas, então eu retribuo e sei o quanto essas coisas, a curto prazo, fazem diferença na vida de alguém, “enquanto a revolução não vem”.
  Então é algo que admiro nas igrejas esse tipo de coisa. É assistencialista, mas quem precisa de assistência agradece. Eu acho necessário as pessoas não só idealizarem e teorizarem sociedades perfeitas. As pessoas deviam buscar ajudar umas às outras como vejo acontecer nas igrejas, por exemplo: minha prima só conseguiu casar como queria porque doaram o vestido de noiva. Meu primo ganhou uma casa e mobília pra morar com a esposa (a casa o locatário não pede aluguel, a mobília a igreja se mobilizou pra comprar). E essa gente que faz isso não é nem super rica, é gente que apenas vê outra pessoa necessitando e tenta ajudar a medida do possível. Na igreja da minha mãe as pessoas ajudam muito umas as outras e não é à toa que tanta gente pobre acaba indo pras igrejas e essas igrejas estejam presentes em tudo quanto é periferia: porque as pessoas precisam e porque as pessoas ali sabem que têm com quem contar. Infelizmente, existe toda a intolerância religiosa, a homofobia e o racismo, o que acaba massacrando a cultura, a história e a vida das minorias que vivem nesses lugares, como a gente sabe. Mas essas pessoas só buscam por isso porque existe esse outro lado da moeda: a esperança e o fortalecimento dos laços comunitários. Acho que é algo que a gente poderia aprender com essas instituições e continuar se esmerando em ofertar, para que justamente as pessoas não fiquem presas a esse tipo de instituição e sofram com o lado negativo delas (que eu acho imenso).
  E o sonho com o paraíso também é algo que ficou marcado na minha vida. Evidente que todo mundo, crente, descrente, todo ser humano, enfim, tem essa necessidade de redenção, de um sentido pra vida dela. Mas pra mim isso ficou em forma de: as pessoas em algum momento deveriam ter “um final feliz”. Algum momento todo esse sofrimento, dor, angústia, devia acabar e as pessoas deviam ser felizes.
  Felizmente (ou não), eu não sou mais crente, portanto eu não acredito que tá ok a gente se foder aqui porque existe um mundo justo depois que todos morrermos. Então isso é que alimenta meu jeito de querer enfrentar e acabar com as injustiças do mundo: eu não consigo aceitar que as coisas sejam assim e não vá haver final feliz pra todo mundo. Eu não aceito jamais, de jeito maneira, nunquinha da silva quando as pessoas dizem “mas sempre foi assim, sempre será”. E eu não to só falando de ideais lindos de acabar com a opressão toda da face da Terra. Eu não aceito que as pessoas sejam cruéis umas com as outras mesmo que não haja necessariamente opressão. Acho ruim enfrentar que “o homem é o lobo do homem” e coisa do tipo. Porque se eu achar que as pessoas são ruins por definição, não vai existir paraíso nunca. As pessoas nunca serão felizes. E eu não consigo conviver com essa ideia.
  Na verdade só consigo pensar que, no momento que eu realmente me convencer que as pessoas são ruins e egoístas inerentemente e não existe meio de termos uma convivência social harmônica, feliz, igualitária, sem opressão e sem crueldade, eu acho que me mato. Porque é isso que me faz seguir em frente, é essa centelha de esperança. Se eu não tiver ela, acho que o melhor que faço pra mim e pelo mundo é mesmo morrer, inexistir.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Sobre o diabo ser o pai da mentira

   Se tem uma coisa que me deixa muito ofendida, é suporem que estou sendo desonesta ou manipuladora. Evidentemente que pessoas desonestas e manipuladoras diriam o mesmo e tudo que tenho é minha palavra que, desacreditada, não significa nada. No entanto, fico ofendida justamente porque eu levo uma vida em que escancaro absolutamente tudo sobre mim e tenho certeza que nunca me pegaram numa mentira (no máximo contradições, coisa que acho natural se você é alguém que aceita mudar de ideia, muda com o tempo ou tem noção de contexto).
   Pra entender como funciono, no entanto, acho importante entender que fui criada por uma mulher evangélica, que levava à risca as ideias dessa doutrina. E uma das coisas que crianças evangélicas aprendem é que o diabo é o pai da mentira e a ter medo, muito medo do inferno. Apesar de não ser mais evangélica, muito pelo contrário, tem coisas dessa minha educação que nunca irão me deixar, e uma delas é um desprezo profundo pela mentira. Outra delas, sobre as quais também quero falar, é um compromisso muito grande e visceral com ser uma pessoa boa (e não por ser boa, mas boa de ter empatia e me preocupar com outros) e ter como objetivo maior da vida um mundo melhor.
   Falo disso porque acho que é uma vivência que pouca gente fora dela entende ou parou pra pensar sobre. É uma perspectiva de mundo muito diferente, um jeito de ser muito diferente, que dificilmente entenderão as pessoas “do mundo”. Esse mundo para o qual saí, mas no qual, devido a essa educação diferente, sempre me sentirei meio estrangeira.
   Diz minha psiquiatra que a base dos meus problemas é esse: a religião e a forma como isso deixou em mim a sensação de ser estrangeira. Não me encaixo lá, não me encaixo aqui. Sou, de fato, uma pessoa estrangeira. Apesar de me esforçar, nem sempre sou suficientemente mundana, mas dentro dos meios evangélicos tampouco eu sou evangélica. E por mais que eu tenha deixado minha infância, a igreja, essas coisas não deixaram de habitar a minha vida e de fazerem parte dos meus conflitos.
   A coisa é que, graças a tudo isso, boa parte da minha ética se baseia no imperativo categórico, que é, traduzindo: não fazer com os outros o que não quero pra mim mesma, acreditar que o mundo não funciona se houver quebra de confiança.
   Sendo assim, eu fico muito admirada sobre como é comum as pessoas que foram criadas fora dessa bolha, mentir ou trair. As pessoas – e isso realmente me choca, ou pra usar uma expressão evangélica e moralista: me escandaliza – traem e mentem o tempo todo. É a isso que as pessoas “do mundo” estão acostumadas e é com base nisso que levam a vida, inclusive mentindo e traindo, “afinal quem não mente ou trai?”.
   Eu não to falando que evangélicos nunca mentem ou traem. Ou que não existem contextos em que essas coisas acabam sendo inclusive a única saída (pois eu sei que o imperativo categórico tem falhas). O que eu percebo é que a mentira e a traição são coisas profundamente naturalizadas aqui “no mundo”, coisa que “lá dentro” jamais seria. E também abro parênteses que, né, depende de que igreja pentecostal ou evangélica estamos falando e tudo isso tem um recorte de gênero bem marcado (geralmente só as mulheres se veem obrigada a seguir de fato a bíblia, nas igrejas).
   Por isso me irrita tanto gente “do mundo” inferindo que to de má-fé. Porque essa desconfiança só existe justamente porque... hum, bom, a pessoa é mentirosa, por isso acha que eu também sou manipuladora, mentirosa, estou de má-fé. Afinal é algo que ela faria, ou outras pessoas fariam. Pois as pessoas fazem o tempo inteiro, tipo respirar. É assim que funciona um universo em que as pessoas, por definição, estão mentindo: não existe confiança. Mas no meu universo é inadmissível que assim seja. É inadmissível eu ser assim, é inadmissível que as pessoas sejam assim.
   Em geral, eu espero das pessoas o contrário: que elas estejam dizendo a verdade. Que elas errem por ignorância, ou que talvez tenha se expressado mal. Porque é isso que eu faço, é assim que eu sou.
   No entanto, eu desconfio de pessoas desconfiadas. Pra mim é uma questão de mão-dupla: as pessoas temem nos outros, aquilo que elas sabem que são capazes de fazer. E fazem.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Minha experiência com performance de gênero

    Eu vou dizer pra vocês que entendo pessoas trans como se tivesse sido eu mesma uma um dia, e vocês vão ver como de, alguma maneira, no meu microcosmo, eu fui.
    Quando pequena eu fui criada nessa comunidade religiosa cheia de restrições no que se refere aos costumes sociais externos (eu me identifico com amishs também). Lá os gêneros eram bem delimitados, marcados e separados. Tinha o lado da igreja dos homens, o lado da igreja das mulheres, as atividades dos homens (de poder, é claro) e as atividades das mulheres (de cuidado, alimentação e limpeza, é óbvio). Tinha as regras de vestimenta dos homens e a regra de vestimenta das mulheres (na igreja, nós mulheres usávamos véus), os instrumentos musicais que cada um podia tocar era também separado por gênero e era subentendido que a fúria de Deus era muito maior contra a desobediência das mulheres do que a dos homens. Era claro que uma mulher devia se manter virgem, mas homens, bom, Deus entenderia que eles tinham “instintos” e “não sabiam se conter”, não é mesmo? É uma igreja criada na década de 50, e me parece que se manteve por lá, ou antes. É por isso que adorava ler livros do século XIX, eu me sentia mais naquela época do que no presente. A roupa, o cabelo, as regras eram as mesmas. E os homens também eram livres e as mulheres não. A maioria das minhas “irmãs” da igreja seriam criadas para se tornarem hoje em dia boas donas de casa, ou no máximo enfermeiras e professoras – trabalhos de mulher. Sim, eu falo isso a sério, é exatamente assim.
    É engraçado que nisso tudo eu pouco me incomodei com esses papéis sociais. Eu não me importava com a ideia de que seria professora ou secretária – afinal, eu era mulher –, eu não me importava de ficar do lado de cá da igreja, ou tocar órgão, não poder ter nenhum poder, ou ser impedida de consumar meus desejos sexuais até. No entanto, uma coisa me incomodava em especial, desde que eu era uma menininha: não poder usar maquiagem, não poder usar as roupas da moda, não poder cortar o cabelo. Parecem coisas realmente supérfluas perto de todo o resto, mas pra mim não eram, e hoje eu entendo muito bem por quê. Hoje percebo que se me livrei desse grilhão foi só por causa de um outro que parece não existir, mas é só porque faz parte de um mundo maior – não é à toa que crentes chamam aqui fora de “o mundo”.
    Eu só queria me “encaixar” melhor. Afinal, era por causa da igreja que eu era inadequada. Eu era estranha na escola, estranha na rua – não é à toa que as outras irmãs ficavam restritas ao universo religioso, lá elas não eram inadequadas. Mas eu queria pertencer ao lado de cá. Ainda mais porque eu tinha muito baixa auto-estima. Então eu queria ser “livre” pra me modificar. E assim ser bonita de acordo com os padrões que toda, TODA mulher, é submetida, esteja ela no “mundo” ou não. A gente chora silenciosamente por não poder cobrir nossos fios brancos, porque não podemos cobrir nossas espinhas, porque nosso cabelo é tão longo que não cai no nosso rosto. A gente não era sexy – e ser sexy, RÁ, é também papel de uma mulher, não é?
    Quando finalmente saí eu me senti livre. Verdadeiramente livre. Eu não escolhia mais minhas roupas de acordo com regras escritas num livro, eu escolhia de acordo com “meu gosto”. Eu podia fazer o que eu quisesse – contanto que não fosse má – e isso fazia sentido. E quando pensava que “as feministas” diziam que essas coisas que me faziam sentir livres eram na verdade uma forma de prisão, eu realmente me afastava e ficava até brava. Como ousam querer tirar algo que sempre sonhei? Algo que a tanto custo conquistei? A minha tão sonhada liberdade?
    Demorei pra entender bem isso. Acho que me faltava contato com “mundo” pra perceber que eu sempre estive no “mundo”, só não podia participar dele.
    Essa realidade de querer fazer algo e não poder e isso nos atrair ainda mais é muito velha. É a história do Barba Azul: você não abra aquela porta. Eu sou uma pessoa desobediente – apesar de ser empurrada pra feminilidade, eu sou exatamente isso: desobediente –, se você me disser não, eu faço. E esse “mundo” era muito sedutor. Claro que não o mundo do empoderamento. Porque no “mundo” coisas como “mulher é feita pra servir”, “mulher é feita pra ser casta”, isso tudo anda ainda muito em voga. Então não me ocorreu que eu podia ser de fato livre ou forte. Mas ser modificada pra me encaixar num padrão obviamente me ocorreu. Afinal existe coisa mais propagandeada que isso? Eu só queria ter acesso a esse mundo de aceitação. Eu só quis abrir a porta que eu sabia que existia – e me era negada – não a porta que o feminismo está tentando construir: a porta da igualdade, a porta para a liberdade de fato.
    Hoje percebo que usar maquiagem não é liberdade – embora para nós a quem isso foi negado, sempre vai ser um ato desafiador, acompanhado de um sabor de desobediência. Mas no fim é o que nos submete a um padrão bem escroto. Eu continuo tendo vergonha de mostrar meu rosto nu. Às vezes sonho que uso uma espécie de burca pra sair na rua e ninguém me ver. Meu rosto nu é minha fraqueza, meu medo. E eu iria adiante e diria que pras mulheres que cobrem sua cabeça, provavelmente a história não é muito diferente. Não é uma liberdade, tampouco uma escolha. Mas é uma história, um contexto, uma realidade, a qual nos apegamos ou não. E é extremamente pessoal abdicar ou não. Mas não é assim como se crê tão superficialmente, uma escolha, uma cultura apenas – afinal nossa cultura, oras, é misógina.
    Eu uso essas bijuterias porque gosto ou pra me encaixar? Provavelmente me encaixar é o sentimento que veio primeiro. Mas essas coisas vão se solidificando, a gente acaba se acostumando, gostando, enfim... O que é individual, o que é social? A gente não sabe.
    Mas, como disse, nisso eu me identificava com pessoas trans. Essa vontade de abrir a porta proibida, de desobedecer o não, de seguir uma ideia falsamente libertadora do que é ser bonita – a “beleza feminina”. Toda essa porcaria que na verdade é uma prisão, mas que ao ser negada a gente quis entrar. De uma prisão para outra, que parece mais confortável, mais bonita. Puro marketing que a gente vai engolindo desde criança.
    Mas o paralelo acaba aqui. Eu não vim pra esse mundo de cá para ser mulher. Eu já era mulher muito antes. Essas coisas nunca me fizeram mais ou menos mulher. O que me fez mulher foi uma socialização rígida que me enfraqueceu, que me amedrontou, que me colocou atrás de grades que eu era pequena demais, vulnerável o suficiente para não conseguir fugir. É essa prisão que é ser mulher. Essa prisão não é sequer o papel social que me foi empurrado. É a forma como fui moldada de forma a encaixar nele, mesmo contra a minha vontade. Essa prisão continua em mim mesmo que hoje em dia eu não queira mais ser dona de casa, mas no fundo, lá no fundo, deixa um resíduo – “eu não quero, mas é o que eu devia fazer”. É algo que ecoa lá no fundo de toda mulher que grita: talvez eu devesse me calar. Mesmo aquela que parece muito forte, mesmo nela há uma voz que é difícil de calar que lhe diz: você é frágil. É algo que não se desvencilha facilmente e não tem nada de prazeroso. E é algo que nos precede.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ser artista e ser mulher num mundo masculino

   Talvez escrever seja diferente para mulheres, ou para algumas mulheres, ao menos.
    Boa parte dos escritores homens, quando falam sobre seu fazer literário, dizem que escrever é rotina, é trabalho, é com hora marcada, exige concentração e esforço.
   Talvez por isso que o mundo do trabalho – mundo criado por homens – é exatamente assim: rotina, trabalho, esforço e horas marcadas. Não há espaço para explosão de criatividade ou inspiração (muitos dizem, inclusive, que inspiração não existe). Talvez inspiração, assim como intuição, seja característica especial de mulheres (percebam que digo especial, mas não exclusiva, percebam que digo boa parte e algumas e não todas e todos).
   Essa vida toda, percebo, foi uma tentativa vã de me adequar a um sistema em que não me encaixava – um sistema essencialmente masculino. E por não ser como os homens, esforçada e metódica, eu não posso funcionar aqui e não há mérito em ser inspirada e intuitiva – qualidades que sequer existem, porque tudo que é feminino tende a ser negado, subjugado numa cultura masculina.
   Murakami, ao falar que escrever exige concentração, dá o exemplo de alguém que sofre de cárie: se concentra na dor, não se concentra na escrita. Então lembrei de Frida Kahlo (ver o filme sobre ela foi o que deu vida a esse texto). Sentiu dor praticamente a vida inteira – talvez pintasse melhor justamente por causa dessa dor. A dor não a distraía, pelo contrário, a arte era seu grito, a expressão, a extensão da sua própria dor. Eu também escrevo quando dói e porque dói. Remédios e bons momentos me roubam a escrita.
   E por muito tempo não me perdoei o fato de minha personagem principal ser eu mesma, vi sempre isso como falta de talento (pra não dizer de caráter). E, embora existissem escritoras e escritores com a mesma característica, eu não dava atenção – sempre foram os marginais e as mulheres (marginais porque mulheres) que escreviam assim. Admito que quando a gente procura em nossas frestas, sempre encontramos um resto de preconceito, ainda mais quando ele é sobre nós mesmas. É fácil se odiar, ninguém prende ninguém por crimes de ódio contra si mesma.
   Me vi na Frida como um espelho – não em genialidade e força, é claro. Mas vi nas pinturas nascendo para enfeitar o gesso que a imobilizava, nas pinturas que retratavam o próprio rosto e que retratavam tão bem um mundo, porque era o mundo que ela conhecia em primeira pessoa.
   Também não consigo me exceder porque não consigo aceitar a ficção que não fale a verdade, a verdade mais pura e honesta, sobre o que é a dor. A dor precisa ser exata, e a dor pra mim tem uma espécie de copyright. Por exemplo, outro dia vi uma menina, ao lado da mãe que pegava garrafas e plásticos do lixo, empilhando tampinhas coloridas num tabuleiro de jogos. Eu pensei: isso daria um bom conto. Mas quem sou eu pra falar com propriedade da vida desta menina?
   Outro dia vi uma mulher, sentada na rua, ao lado de sacos de lixo, ela estava muito suja, mas tinha um esmalte na mão e pintava as unhas de vermelho. Eu pensei: talvez uma bela fotografia, ao menos, isso a respeitaria... Então concluí que não. Não é certo eu sair do meu apartamento, com minha máquina fotográfica cara, fotografar a dor da pobre moradora de rua, que mesmo suja pinta as unhas de vermelho. Que sei eu da dor dela? Que sei eu de pintar as unhas de vermelho do lado do lixo? Eu não sei, e não vou saber nem imaginando. Eu sofro por ela, por existir um mundo assim. Mas eu nunca saberei o que é sofrer a dor dela.
   Quando a gente é mulher – ou quando a gente sofre – fazer arte não exige que inventemos personagens, existe uma personagem com riqueza de detalhes dentro de nós. De fato, Murakami tinha razão: se estamos com cárie, não vamos nos concentrar na escrita, mas em nós. Mas existe algumas de nós que nos tornamos escrita e que transportamos nossa dor para lá.